Desse
no que desse e por mais ou menos voltas, ela acabava sempre por se pronunciar
sobre as energias. As energias! O raio das energias... Assumia-se como uma
mulher especial, dotada de um qualquer dom (para o qual eu e a maior parte do
comum dos mortais não tinha a mínima sensibilidade), dizia-se ainda carregada
de energia, mas que apenas a usava para o bem de toda a humanidade. Nunca
percebi que raio de treta era essa da energia, e francamente mais me parecia
uma daquelas parvoíces que às vezes aparecem naqueles programas da tarde na
televisão…
Um
dia disse-me em tom intimidador: “… a tua sorte ainda é o respeito que tenho
por ti e por tudo o que fizeste por mim... Senão aplicar-te-ia um golpe fatal!”
A forma como falou fez-me tremer, o raio da mulher ou estava completamente
louca, ou estava endiabrada. Eu apenas tinha colocado em questão aquela coisa
das energias de que ela tanto apregoava. E sinceramente, já estava mais que
farto daquela conversa. Mas a verdadeira gota de água, creio que foi o meu
aconselhamento enquanto amigo de procurar a ajuda de um psicólogo e até me
disponibilizei para a acompanhar. Confesso que até fui brando, tudo aquilo já
estava a dar comigo em louco, a minha ideia inicial até era falar-lhe de um
psiquiatra. E em bom tempo que não falei, talvez por comiseração mudei de
especialista. A sua reação teria sido de certeza pior…
Desde
algum tempo que noto nela algo de errado, mas há cerca de um mês a coisa piorou
bastante. Tornou-se violenta, desde então só fala de sangue, golpes e chagas.
Afirma que de noite os objetos em sua casa flutuam indiscriminadamente em torno
de si mesma e culpa perentoriamente o bode… Descreve tal criatura como um misto
de homem e de bode, corpo de homem musculado e cabeça de um bode. Queixa-se do
seu intenso fedor e da sua disseminação por todo o lado. Efetivamente, não
creio que exista tal criatura, mas certo é que por inúmeras vezes as suas
roupas apresentam um odor pestilento e fétido, algo parecido com o odor do
enxofre, mas de tal forma estranho e impossível de uma descrição mais
minuciosa. Do pouco que me contou, o bode obrigava-a a ter relações de índole
sexual. Verdade ou não, o certo é que ela andava sempre com o corpo marcado,
nódoas negras e golpes profundos espalhados por todo o corpo.
Diz
ainda que fala com uma pessoa e que só ela a consegue ver. Afirma
entusiasticamente que essa pessoa é de boas energias, ao contrário do maldito
bode. Mas o nome dessa pessoa nunca o mencionou, diz que não pode profanar as
leis gerais, a punição para tal crime é demasiado severa. Declara que a tal
pessoa já morreu há 34 anos atrás e que a sua missão neste mundo é ajudá-la
contra o bode.
Há
umas semanas atrás, o nosso patrão, o sr. Leoterio andava completamente
desesperado com ela, nada do que lhe ordenava era cumprido. Num desses dias, o
sr. Leoterio já mais que farto ameaçou-a de despedimento. O seu comportamento
face a tal ameaça foi bastante violento e intempestivo, e enquanto não surgiu
um pedido de desculpas, a vida do sr. Leoterio correu do pior possível.
Discussões conjugais passaram a fazer parte da sua agenda diária, problemas de
saúde na família, infiltrações nas instalações da empresa, assalto, incêndio e fuga
de clientes sem qualquer razão aparente. Tudo isto numa semana, até que o sr.
Leotério se aperceber da verdadeira causa de tal tempestade horrenda, tudo
apontava para as energias dela, que geravam todo aquele tormento, todo aquele
mau estar. Pediu-lhe cordialmente as suas desculpas, assumindo injustamente que
tinha tomado uma atitude insensata e precipitada, e que não tivera refletido
corretamente na sua ação. E Como bonificação deu-lhe ainda um aumento. Foi esse
o custo do regresso à normalidade na vida do Leoterio.
Aquando
o seu divórcio ajudei-a bastante. Coisas entre amigos… Mas, o certo é,
fisicamente nada se passou... O que para mim como homem sempre me deixou alguma
frustração. Embora agora, mais que nunca, sinta algum alívio por nada se ter
passado…
Recordo-me
que ela tinha uns livros muito antigos. Velhos pertences da sua falecida bisavó
ou avó. Conservava-os religiosamente num velho baú de cânfora. Pedira-me para o
guardar em minha casa, mas com uma condição assente, a de que nunca, mas mesmo
nunca, o abrisse. Certo dia cheguei a casa e a curiosidade revelou-se maior que
o devido e lá acabei por abrir o baú. Estava repleto de livros com bruxarias.
Folheei um, continha receitas e fórmulas e das poucas imagens existentes
naquele livro, essas eram no mínimo perturbadoras, para não dizer aterradoras.
Fiquei regelado só de o folhear e acabei por não ter coragem para pegar noutro.
Creio
que ela tenha lido algum deles. Tal comportamento só pode ter origem naqueles
livros macabros!
Quem
sabe se o marido não a teria deixado por causa daquele maldito baú, ela
dissera-me que o marido a deixara por uma mulher uns bons pares de anos mais
nova e de longos cabelos loiros. Satirizava dizendo que agora trata-a por
“amorzinho”, lamentando-se logo de seguida “…e a mim nunca me tratou assim, nem
sequer no princípio do nosso namoro...”, e acrescentava ainda, “ele agora só
usa calças de ganga e anda com o cabelo puxado para trás com gel!”, “Está um
homem moderno!” , arrematou ela, satirizando.
Numa
daquelas coincidências encontrei-o outro dia, andava às compras com um amigo.
Do “amorzinho” não havia sinais, ou haveria? Perguntei-lhe como corria a vida,
não é que tivesse muita confiança com ele, apenas o via duas ou três vezes por
ano. No jantar da empresa, nos anos dela, e numa ou outra ocasião esporádica.
Aparentavam dar-se relativamente bem. Ele parecia-me um tipo porreiro, pacífico
e sempre bem-disposto. Ao que sei tinha uma pequena loja de venda de animais de
estimação num pequeno centro comercial: cães, gatos, peixes, pássaros, coelhos
e ratinhos domésticos; este era o seu negócio. No que toca à fauna e do pouco
que falámos nas igualmente poucas ocasiões, era um indivíduo de uma cultura
acima da média e de certa forma até excêntrico, sabia de tudo e mostrava-se
sempre interessado em aprender mais, qualquer que fosse o assunto. Afirmava que
o seu animal preferido era o dragão de Komodo
e que o seu sonho seria ir à Indonésia conhecer o seu animal predileto.
O
Pinto tinha sido meu colega de escola, um grande amigo, daqueles que acabaram
por ficar para a vida, mas que por forças das circunstâncias seguem caminhos
distantes dos nossos. O Pinto trabalha numa multinacional em Espanha e de vez
em quando telefona-me. O Pinto ainda era primo afastado do ex-marido dela e
certo dia veio à baila o divórcio deles e a sua nova namorada. O estranho é que
o Pinto me desmentiu categoricamente o que ela me tinha confessado. Começou por
dizer que seria impossível ele ter uma namorada, que só poderia ser mentira.
Fiquei ainda mais confuso, tudo fazia cada vez menos sentido…
Terá
sido o amigo das compras o motivo do divórcio, ou foi o raio dos malditos
livros?
Campos.
* Esta crónica foi publicada no jornal diário Correio do Minho em 23 de Agosto de 2013. http://www.correiodominho.com/cronicas.php?id=5330
A análise do senhor Provedor Américo Baptista:
Cruzes credo. Já rezei dois terços. Oponho-me à publicação deste texto.
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