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“À espera…”

Lá de fora apenas escuto os sons e vejo a luminosidade do dia... Noto que os varredores já iniciaram a sua labuta, oiço as suas vassouras a rasparem freneticamente no chão. Creio que ainda é cedo, mas para mim tanto me faz! Todos os dias são iguais, todos os minutos são iguais, a noção do tempo já pouco ou nada me importa... Nesta fase já nem sei o que realmente importa, se é que existe alguma coisa que importe realmente! Vejo-me a definhar lentamente de dia para dia. Talvez até já tenha definhado, perecido, nesta ou noutra vida, quem sabe?
Mantenho escrupulosamente a janela aberta, para que possa ainda ver a cor do dia, e este é um dos poucos prazeres que ainda me restam …
Na rua oiço agora os martelos pneumáticos, indago o que estarão a arranjar. Mas rapidamente desisto, não quero saber! Consertos já não são para mim. Tanto se fez, e nada se fez, a salvação se é que alguma vez chegou a existir, já se finou e nada mais há a fazer. E tudo isto para grande descontentamento de muitos, e alegria de uns quantos (os quais eu eventualmente acabarei por perdoá-los no dia seguinte ao grande final), todo o nada que se fez foi em vão…
Há quem diga que o tempo cura, que sara as feridas desferidas pela infame vida… Mas para mim tudo isto é simplesmente maléfico! Suja-me a alma só de pensar nisto, de tal modo que a cada dia mais doente fico só de pensar nisto… Pressinto que o dia final se aproxima a passos largos! Mas vamos mudar de assunto, que a morte por enquanto ainda não bateu à porta, conquanto, escuto os seus passos de noite. Estou segura de que as rezas proteger-me-ão mais alguns minutos, talvez até mesmo mais uns dias. Não sei se será essa a minha vontade, remeto tal decisão ao destino, um destino malfadado que me atormenta a todos os minutos…
Oiço agora crianças a gritar e a rir, brincam! O chiar dos baloiços entra-me nos ouvidos trazendo-me reminiscências da minha juventude. Uma onda de saudosismo penetra as reentrâncias obscuras da minha alma, talvez seja um bom presságio, talvez me dê um maior ânimo, um maior alento para continuar viva, ou não! Talvez me traga um sofrimento ainda maior. Como se fosse possível uma tortura pior ainda que a tortura de estar praticamente imóvel num quarto, confinada a uma cama, para ser mais precisa.
A televisão é desde então a minha companhia permanente. Essa caixa mágica e a dona Maria são as minhas únicas formas de comunicação com o mundo. A dona Maria passa cá por casa duas vezes ao dia, traz-me o almoço e o jantar e ainda me conta todas as novidades do que se passa aqui no bairro. Informa-me sobre quem ainda por cá permanece e que ainda não definhou. Por vezes revisitamos o nosso passado e todas as agruras de uma vida sempre difícil. Cada vez mais me convenço de que os bons partiram sempre mais cedo (morte ou fuga daqui). E todos os outros que por aqui teimaram em permanecer, conto apenas os mais sacanas. “Os sacanas” ficam sempre! Mas a vida é sempre assim, e apenas nos resta conformar. Falando agora da dona Maria (muito boa pessoa esta), é ela que me tem valido, sobretudo depois desta fase da minha vida. Sim, por que eu encaro isto como uma fase, embora esteja mais que certa que se trata em boa verdade, de um estágio já sem retorno.
É hora de almoço, a dona Maria chegou. É sempre pontual. Hoje para o almoço trouxe pataniscas de bacalhau com arroz e legumes a acompanhar. Ela trata-me como se eu fosse filha dela, uma filha debilitada, e na verdade quase que tinha idade para ser minha mãe. Somos vizinhas há mais de trinta anos, juntas vimos por aqui nascer muita gente neste bairro, mas também vimos morrer muitos amigos e até inclusive os nossos maridos. Que Deus os lá tenha em descanso, que eu não o quero por perto, nem mesmo morta. Dada a bondade do meu falecido, até comprei um terrado noutro cemitério, só para não seja enterrada junto desse animal, dessa besta. Sofri muito com ele, quer eu, quer a dona Maria com o seu marido. Fomos verdadeiras mártires nas mãos daqueles dois homens, o álcool potenciava-lhes a ruindade, mas nunca tivemos coragem de fugir, tal como outras nossas amigas e vizinhas. O medo foi sempre maior que a coragem. Mas o que me consolou nestes últimos anos após a sua morte foi o sabor da vingança! Ele já não se mexia muito bem, sofria de artrose, o que não era impedimento para me continuar a espancar. O estupor! Passei anos com nódoas negras, e estava na altura de ser feita justiça... Durante mais de dois meses deixei esperançosamente um tapete no topo das escadas, até que num dia de véspera de eleições, a besta finalmente caiu! Admito que até me custou ao início, mas foi bem merecido! Pensei eu durante estes anos, mas agora que estou neste estado, assalta-me um certo sentimento de arrependimento. Mas o que posso fazer, já está, já foi e não se pode desfazer. Só eu e a dona Maria sabemos do verdadeiro motivo da queda. Ela pensou muitas vezes em fazer o mesmo, mas a ela faltou-lhe sempre a coragem... O seu marido acabou por morrer numa rixa no café do bairro, por causa de um jogador qualquer, que agora não me recordo do nome, eu nunca gostei de futebol, sempre me fez confusão. Foram coisas de bêbados, pena foi o meu marido nunca ter ligado muito ao futebol, quem sabe se eu não teria passado menos…
A dona Maria já se foi embora, hoje não pode vir trazer o jantar, trouxe-me a comida já a contar para o dia inteiro. Antes de ela se ir embora, pedi-lhe que me fizesse um pequeno favor. Que fosse à cozinha buscar uma faca e que cortasse o fio da televisão, quase lhe supliquei para que cedesse ao meu pedido. Mas só assim poderei garantir que a televisão não se voltará a ligar, nem mesmo pela mais ínfima tentação de rastejar até ela. A cabra! A cabra vai passear e eu aqui, imóvel, estanque ao mundo… Antes, pedi-lhe ainda que fechasse a persiana e que colocasse um cobertor à sua frente, para que nem um único raio de luz penetrasse neste quarto.
Agora apenas me resta aguardar que a morte chegue finalmente, para que me desligue por completo deste malfadado mundo, mundo difícil e cruel, este…
18:47 CHEGA FINALMENTE A MINHA HORA, um adeus e um despedimento de até uma próxima…
Antes ordenei num papel de uma conta da mercearia, que caso o meu jantar permanecesse ali naquela mesinha de cabeceira, que o dessem ao Piloto, nunca gostei dele. Cheguei-lhe a bater com o guarda-chuva, mas com o aproximar do meu definhamento optei por tentar umas tréguas, apenas me lembrei dele. Sim, sim, um cão. A morte tem destas coisas…
 
Campos.
 
 
 
* Esta crónica foi publicada no jornal diário Correio do Minho em 8 de Agosto de 2013.
http://www.correiodominho.com/cronicas.php?id=5317
 

 
A análise do senhor Provedor Américo Baptista:

Raio da velha. Tinha maus fígados.

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