Falava sempre das energias, assumia-se como uma mulher carregada de energia, mas que apenas a usava para bem. Nunca percebi bem que treta era essa da energia. Mais me parecia uma daquelas tretas dos programas da manhã na televisão…
Um dia disse-me que “… a tua sorte é que te respeito por tudo o que fizeste por mim... Por que senão aplicar-te-ia um golpe fatal!” A forma como ela falou fez-me tremer, o raio da mulher, ou estava tola, ou estava possuída. Eu apenas tinha posto em questão as energias de que ela tanto falava. Sinceramente, já estava farto daquela conversa, falasse do que falasse, a conversa ia sempre aí parar, e eu que na minha ingenuidade e como amigo a aconselhei a procurar um psicólogo. Eu até fui brando confesso, aquilo tudo já estava a dar comigo em tolo e sinceramente, a minha ideia seria a de a aconselhar a visitar um psiquiatra… Ainda bem que não disse, não sei como seria a sua reacção, mas seria de certeza pior ainda…
Desde algum tempo que noto que algo se passa de errado, desde à um mês que ela se tornou violenta. Só falava de sangue, golpes e chagas. Dizia que falava com uma pessoa e que só ela a via. Afirmava que de noite os objectos em sua casa flutuavam em torno de si mesma e culpava o bode… Descrevia tal personagem como um misto de homem e de bode, corpo musculado de um homem e cabeça de um bode. O seu fedor era intenso e espalhava-se por todo o lado. Não creio que tal personagem exista realmente, mas certo é que por vezes as suas roupas apresentavam um odor fétido, um odor estranho e impossível de uma descrição minuciosa. Do pouco que soube o bode obrigava-a a ter relações de cariz sexual. Certo é que ela andava sempre marcada, nódoas negras e golpes profundos espalhados pelo corpo. O cabelo andava cada vez mais desmazelado, eriçado e volumoso, parecia uma vassoura velha…
Afirmava que a pessoa com quem falava era de boas energias, nunca me disse o seu nome, dizia que não podia, e declarava que ele tinha morrido há 34 anos atrás e que a sua missão neste mundo seria ajudá-lo neste novo mundo, o nosso mundo.
O nosso patrão, o sr. Simões andava desesperado com ela, pois ela não fazia rigorosamente nada do que ele ordenava. Certo dia, já mais que farto o sr. Simões ameaçou-a de despedimento. O seu comportamento face a tal ameaça foi violento e intempestivo, e enquanto ele não lhe pediu desculpas, a sua vida correu pior do que se poderia imaginar. Discussões com a sua esposa passaram a ser uma constante e até o melhor cliente da empresa prescindiu dos nossos serviços sem qualquer razão aparente. Foi uma semana terrível e creio que o sr. Simões acabou por se aperceber da verdadeira causa de tal tempestade horrenda, eram as energias dela que geravam todo este tormento, todo este mau estar. Pediu-lhe cordialmente as suas desculpas, assumindo injustamente que tinha tomado uma atitude insensata e precipitada, e que não tivera reflectido realmente na sua acção. Como bonificação deu-lhe um aumento. A vida do sr. Simões passado um ou dois dias acabou por voltar à normalidade.
Aquando o seu divórcio ajudei-a muito, coisas de amigos… Mas, certo é, fisicamente nada se passou... O que para mim como homem sempre me deixou alguma frustração. Embora agora, mais que nunca, sinta algum alívio por nada se ter passado…
Recordo-me que ela tinha uns livros muito antigos, velhos pertences do seu falecido bisavô. Conservava-os religiosamente num baú de cânfora. Pedira-me para o guardar em minha casa, mas com uma condição assente logo de início, a de que nunca, mas mesmo nunca, o abrisse. Um dia cheguei a casa e a curiosidade revelou-se maior que o devido e acabei por abrir o baú. Estava repleto de livros com bruxarias. Folheei um, as poucas imagens contidas nele eram no mínimo perturbadoras, para não dizer aterradoras, fiquei regelado só de o folhear. Acabei por não ter coragem para pegar noutro.
Creio que ela tenha lido algum deles. Tal comportamento só pode ter tido origem naqueles livros macabros!
Quem sabe se o marido não a terá deixado por causa do maldito baú, ela dissera-me que o marido a deixara por uma mulher uns bons pares de anos mais nova e de cabelos loiros longos. Agora trata-a por “amorzinho”, “e a mim nunca me tratou assim, nem sequer no princípio do nosso namoro...” “ele agora só usa calças de ganga e anda com o cabelo puxado para trás com gel!, Está um homem moderno!” , arrematou ela.
Numa daquelas coincidências encontrei-o outro dia, andava às compras com um amigo, do “amorzinho” não havia sinais, ou haveria? Perguntei-lhe como corria a vida, não é que tivesse muita confiança com ele, apenas o via duas ou três vezes por ano. No jantar da empresa, nos anos dela, e numa ou outra ocasião esporádica. Aparentavam dar-se relativamente bem. Ele parecia-me um tipo porreiro, pacífico e sempre bem-disposto. Ao que sei tinha uma pequena loja de venda de animais de estimação: cães, gatos, peixes, pássaros, coelhos e ratinhos domésticos; este era o seu negócio. No que toca à fauna e do pouco que falámos, era um indivíduo extremamente culto e excêntrico, sabia de tudo e mostrava-se sempre interessado em aprender mais, qualquer que fosse o assunto. Afirmava que o seu animal preferido era o dragão de Komodo e que o seu sonho seria ir à Indonésia conhecer o seu animal predilecto.
O Carvalho tinha sido meu colega de escola, um grande amigo, daqueles que acabaram por ficar para a vida, mas que por forças das circunstâncias seguem caminhos distantes dos nossos. O Carvalho trabalhava aos anos numa multinacional em Espanha e de vez em quando lá me telefonava. O Carvalho é primo afastado do ex-marido dela e certo dia veio à conversa o divórcio deles e a sua nova namorada. O estranho é que o Carvalho me desmentiu categoricamente o que ela me tinha confessado. Começou por dizer que seria impossível ele ter uma namorada, que era uma completa mentira, uma mentira forjada. Fiquei ainda mais confuso, cada vez a história fazia menos sentido…
Terá sido o amigo o motivo ou o raio dos malditos livros?
Comentários
Enviar um comentário